No dia 19 de julho, o desembargador Eduardo Rocha de Siqueira do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) foi flagrado humilhando um guarda municipal de Santos, litoral paulista, depois de ser multado por caminhar sem máscara na praia.
Além de chamar o agente da Guarda Civil Municipal de “analfabeto”, o desembargador ligou para o Secretário Municipal de Segurança Pública de Santos – a fim de demonstrar que possui contato com autoridades – e rasgou a multa.
Não foi a primeira vez que o magistrado recorreu a sua posição para se safar de uma multa por não usar máscara facial em local público. Em outra ocasião, em maio, Siqueira chega a falar em francês com o guarda municipal para inflar a própria autoridade.
A prática da ‘carteirada’, infelizmente, não é rara no Brasil. O ato de utilizar a posição política, acadêmica ou financeira para demonstrar autoridade para benefício próprio ou de terceiros tem sido estudado por antropólogos como Roberto DaMatta.
Em seu livro Carnavais, Malandros e Heróis (1997), DaMatta analisa uma frase dita quase sempre por quem tenta uma ‘carteirada’: “Você sabe com quem está falando?”. Se o sujeito não for um desembargador, ele é amigo de um. Se não for um importante engenheiro civil (“mais que um cidadão, melhor que você”), é parente de um.
É crime dar carteirada?
Acredito que não deveríamos precisar de uma lei para impedir o mau-caratismo, mas infelizmente não vivemos em um mundo ideal. Entretanto, a lei nº13.869, sancionada em 5 de setembro de 2019 (sim, bem recente), configura crime o abuso de autoridade
quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal. (BRASIL, 2019, art. 1º)
A lei se aplica a qualquer agente público, servidor ou não, da administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de Território, compreendendo, mas não se limitando a:
I – servidores públicos e militares ou pessoas a eles equiparadas;
II – membros do Poder Legislativo;
III – membros do Poder Executivo;
IV – membros do Poder Judiciário;
V – membros do Ministério Público;
VI – membros dos tribunais ou conselhos de contas.
(BRASIL, 2019, art. 2º, grifo nosso)
Pelo artigo quarto da lei, se condenado, o agente público que abusou de sua autoridade, pode ficar inabilitado de exercer sua função pública ou mesmo perder o cargo.
O desembargador que humilhou os guardas municipais de Santos terá que prestar informações sobre o caso, segundo intimação da Corregedoria Nacional de Justiça. A penalização para esse magistrado poderá ajudar na resposta da pergunta no título deste texto.
E quando a carteirada vem de um profissional liberal?
Advogados, médicos, engenheiros e vários outros profissionais estão ligados a conselhos de classe que possuem códigos de ética e conduta muito rigorosos. Desde que haja provas de que houve abuso de poder e autoridade (geralmente vídeos), a denúncia pode ser feita à Ordem de Advogados do Brasil (OAB), ao Conselho Regional de Medicina (CRM), ao Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (CREA), por exemplo.
Nenhuma empresa quer gente assim trabalhando para ela. É o caso da mulher que discutiu com um fiscal da Prefeitura do Rio de Janeiro, alegando que o marido, por ser engenheiro civil, era melhor que o agente público. Ela foi demitida da empresa que trabalhava, após o vídeo flagrando a carteirada rodar a Internet.
Ninguém é melhor que ninguém por ter mais estudos ou receber mais que outra pessoa. Respeito é bom e todo mundo gosta. Ainda não vivemos em um Brasil em que dar ‘carteirada’ não compensa mais, mas acredito que estamos no caminho certo.